9.1.08



As Garotas do Rádio:
uma história hedionda

Com a internet, nada mais cai no esquecimento, embora ainda faltem palavras para certas sensações


Por mais palavras que registrem os dicionários, sempre haverá sensações indefiníveis. Cortar o dedo com papel, por exemplo, é uma delas: acima da dor, paira a obscena traição daquele ferimento, a absurda injustiça metafísica do sangue derramado por um material inocente que, em nenhuma outra circunstância, se ousaria chamar perfuro-cortante. A aflição causada pelo giz que arranha o quadro-negro também ainda não encontrou a palavra certa, assim como aquela dentada involuntária que se dá no papel prateado agarrado numa bala ou num docinho de aniversário.

Digo isso porque, há dias, tento encontrar uma palavra para definir o que senti quando, por acaso, li na Internet sobre as Garotas do Rádio. É uma história antiga, que deu origem a leis trabalhistas importantes, péssima poesia e alguns livros de história, direito e reportagem, mas da qual eu nunca tinha ouvido falar.

Em princípios do século passado, um inventor americano esteve em Paris com Pierre e Marie Curie, de quem ganhou de presente um pouco da extraordinária substância que haviam descoberto, o rádio. As pedrinhas eram muito bonitinhas, tinham luz própria e logo o diligente inventor achou uma forma de dar-lhes uso, triturando-as, misturando-as com cola e com um ingrediente que brilhava no escuro graças ao contato com a radiação. Nascia ali uma tinta “mágica” que, durante a Primeira Guerra, foi produzida em larga escala com o nome de Undark, e usada na pintura de diversos itens, sobretudo mostradores de relógio. O exército americano adotou a novidade, que também fez enorme sucesso entre os civis, aplicada a objetos como interruptores de luz e brinquedos.

Até aí, normal: na época sabia-se pouco sobre a radioatividade, e a curiosidade humana não tem limites. Aliás, sempre me pergunto quantos milhões de pessoas morreram ao longo dos tempos insistindo em comer plantas e bichos venenosos até que se descobrissem formas seguras de prepará-los, como se não houvesse outra experiência gastronômica disponível nas redondezas; mas isso são outros quinhentos.

A fábrica de mostradores de relógio da US Radium Corporation ficava em Nova Jersey, era limpa, moderna e pagava bem. E como mulheres supostamente têm mais paciência e mais jeito com coisinhas delicadas, centenas de garotas (mesmo; algumas mal saídas da puberdade) foram contratadas para pintar números, ponteiros e detalhes variados. A ponta dos pincéis tinha que estar sempre fina para que o trabalho saísse bom; portanto, cada vez que os fios se abriam, o que era freqüente, elas levavam os pincéis à boca para refazer-lhes as pontas com a língua e com os lábios.

Foi este detalhe horrendo da história que me arrepiou dos pés à cabeça, causando a angústia que não sei definir: fileiras e fileiras de moças, como as simpáticas telefonistas d’antanho com que a Telerj enfeitava as capas dos catálogos, lambendo delicadamente a morte.

* * *

A história das Garotas do Rádio é particularmente sinistra porque, quando os efeitos da radiação começaram a ser descobertos, a US Radium os escondeu delas. Os cientistas que tinham contato com o rádio já o faziam devidamente protegidos, enquanto elas continuavam a ser instruídas a lamber os pincéis. Os conhecimentos da época sobre o perigo dos materiais radioativos não eram difundidos como hoje; para as garotas, trabalhar com a tinta fosforescente era até divertido (como, tantas décadas depois, foi divertido para as crianças de Goiânia brincar com o Césio 147) e, ocasionalmente, muitas chegaram usá-la para pintar o rosto e as unhas para fazer bonito nas festas.

Passados poucos anos, várias começaram a ter doenças estranhas. Logo a ligação entre causa e efeito foi ficando óbvia e, em 1925, um grupo entrou na justiça contra a fábrica. Novos detalhes hediondos incluíram testemunhos de falsos médicos a favor da US Radium, falsificação de laudos de especialistas e, até, a inexplicável adesão de médicos e dentistas aparentemente sérios e honestos à tese de que a tinta não tinha nada a ver com os problemas de saúde das litigantes. Num caso de má fé raras vezes igualado na abundante história de má fé das relações trabalhistas de princípios do século passado, as necroses de maxilar, os tumores do queixo e vários tipos de câncer apresentados pelas jovens foram atribuídos à sífilis, numa tentativa de desmoralizá-las.

O processo chamou a atenção da imprensa e, logo, também, do grande público. Graças a isso, a US Radium não conseguiu sepultar sossegadamente as vítimas e as evidências e, em 1928, fechou acordo fora dos tribunais, comprometendo-se a pagar indenizações às funcionárias que haviam entrado com a ação. O valor, de dez mil dólares para cada uma, era ridículo mesmo naquele final dos anos 20, mas elas não tinham nem tempo, nem escolha; em meados dos anos 30, já estavam mortas. Como escreveu Eleanor Swanson num poema de resto muito ruim, seus ossos vão brilhar para todo o sempre na escuridão da terra.


(O Globo, Segundo Caderno, 10.1.2008)